Categorías Polémicas na descrição da situação conflito entre os limites λόγον ἔχων e ἄλογος na ψυχή (Aristóteles, EN 1102b13-1103a10, 1105b19-1106a13)
António de Castro Caeiro
Universidade Nova de Lisboa
A expressão latina que define a essência do humano como "animal rationale" (Cf., por exemplo, Séneca, ep. 41, 7-9: "da Lauda in illo, quod nec eripi potest nec dari, quod proprium hominis est. Quaeris, quid sit? Animus et ratio in animo perfecta. Rationale enim animal est homo.") traduz supostamente a essência do humano tal como Aristóteles a pensa. O humano é o único ser vivo com o λόγος (Cf. por exemplo, Política, 1253a8-9: λόγον δὲ μόνον ἄνθρωπος ἔχει τῶν ζῴων). Ora, independentemente de traduzirmos o particípio por 'com', enquanto particípio de acção concomitante, ou o traduzirmos por 'que tem' não conseguimos dar conta do conjunto de problemas que está implicado no ἔχον a pôr em relação o ζῷον com o λόγος. Na verdade, mesmo admitindo a tradução redutora de ἔχω por 'ter' não se percebe imediatamente o seu sentido. Talvez até se devesse dizer que o humano é o ser vivo que é capaz de λόγος e assim também que a fórmula latina deveria ser capax rationis. É que a condição humana pode definir uma tendência ou uma pré-disposição para o λόγος mas como mera possibilidade que pode não acontecer. Além disso, não se pode descartar a possibilidade de estarmos constantemente expostos precisamente ao limite oposto do e contrário ao λόγος, o ἄλογος, os πάθη.
A Ética a Nicómaco não escamoteia esta dificuldade. De facto, sem dúvida que nela se procura esclarecer o sentido do verbo ἔχω como expressão da relação do humano com o λόγος. Mas, mais importante ainda, nela procura-se esclarecer de que modo é que em situações em que somos assaltados, invadidos e controlados pelos πάθη se mantém de algum modo contacto com o sentido. Quer dizer o que é incompreensível e ininteligível é uma expressão ainda de um horizonte de inteligibilidade. Isto é, a lucidez, ψυχή, no humano implica-nos numa relação com o λόγος e com o ἄλογος enquanto os seus limites, mas de tal forma que toda e qualquer situação prática resulta numa ou de uma tensão entre um e o outro oposto. O λόγος implica uma relação de tensão com o seu oposto e o ἄλογος tem de algum modo um contacto com (e está associado ao) λόγος.
É a partir desta atmosfera que envolve o humano com a possibilidade de compreender e de dar sentido ao que de cada vez lhe acontece e assim também com a possibilidade de não compreender e de não fazer sentido nenhum das circunstâncias em que de cada vez se encontra que Aristóteles descreve as grandes antinomias práticas. Isto é, os limites extremos da ψυχή, λόγος/ἄλογος, configuram diversos horizontes de entes (o teórico, o técnico, o prático, o físico) e é precisamente no interior do horizonte da ζωὴ πρακτική que se manifestam de um modo mais diverso e de forma particularmente conflituosa: ἀκρασία/ἐγκράτεια, ἀκουσία/ἑκουσία, mas também entre o modo como agimos estando afectados por παθή: ἀπροαιρέτως e o modo como agimos por decisão antecipada: προαίρεσις. A possibilidade de constituição do λόγος no domínio prático depende, precisamente, do modo como a invasão patológica é controlada por nós, depende, portanto, do modo como nos comportamos com um medo tremendo, isto é: 'com' coragem (não fugindo) e com um desejo irresistível, isto é: 'com' sensatez (fugindo). Não há, portanto, coragem sem medo nem sensatez sem desejo. Podemos ver que o que está em causa é um quadro geral de conflito resultante de assaltos (ὁρμαί) que combatem contra (μάχομαι) e resiste ao (ἀντιτείνω), que se opõem ao (ἐναντιόομαι) e correm contra (ἀντιβαίνω) o λόγος e o seu projecto em nós.